Um panteão dedicado aos heróis prediletos do tradicionalismo ocupa o espaço mais nobre do Acampamento Farroupilha. No recanto, defronte à praça central, foram erigidos painéis com retratos de Bento Gonçalves, Antônio de Souza Neto, Giuseppe e Anita Garibaldi, Domingos José de Almeida e David Canabarro. Há entre os acampados, porém, um grupo que não está disposto a prestar vassalagem ao sexteto canônico e organiza uma ação ousada para os próximos dias. O plano consiste em adicionar novos painéis ao altar, em homenagem a outros heróis: os negros farroupilhas.
– Queremos ver o que acontece – provoca a advogada Tânia Maria Vargas Machado, 55 anos.
Tânia é tesoureira do Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos, criado sete anos atrás para tirar das sombras a contribuição que os africanos deram à formação do gaúcho e à guerra civil de 1835. Segundo o manifesto do piquete, “tudo o que foi construído neste Estado tem o braço e a participação do negro, inclusive essa cultura gauchesca que se impõe”. Essa influência estaria presente na culinária guasca, em palavras do vocabulário gaudério, na dança, na música e no próprio homem campeiro.
– Quem trabalhava no campo e na charqueada, fazendo serviço pesado, era o negro. O tradicionalismo tenta escamotear isso. Não podemos ficar calados. Agora que está tudo bonito, vão tirar os negros da festa? Porongos, de novo? – questiona o patrão do piquete, o policial civil Luiz Fernando Centeno, 56 anos.
Centeno se refere ao episódio mais trágico da Guerra dos Farrapos, ocorrido na madrugada de 14 de novembro de 1844: o morticínio de soldados negros que lutavam ao lado dos farroupilhas, nas imediações do Cerro dos Porongos, em Pinheiro Machado. Para sustentar o conflito armado com as tropas imperiais, que tinham o apoio das maiores cidades gaúchas, os estancieiros rebelados contavam com poucos soldados. A solução foi recorrer a escravos, com a promessa de conceder alforria depois da guerra. Os cativos aderiram e formaram um corpo legendário de combatentes, o dos Lanceiros Negros, que em alguns momentos representou metade de todas as forças farrapas.
Lembranças de massacre instigam historiadores
Na noite de Porongos, esses negros foram trucidados por forças imperiais. Pouco depois da guerra, veio a público uma carta com indícios de que a chacina pode ter sido acertada entre o líder farrapo David Canabarro e o comandante das forças legalistas, o Barão de Caxias. Remetida por Caxias ao seu subordinado Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, a missiva informaria a hora, a data e o local em que deveria ser feito o ataque aos lanceiros, assegurando ainda que os negros estariam desarmados.
– Relatos da época, como o de Manuel Alves da Silva Caldeira, farroupilha presente em Porongos, afirmam que Canabarro teria sido avisado da aproximação de tropas inimigas e, mesmo assim, não teria tomado providência alguma. Pelo contrário, teria propositalmente desarmado e separado os lanceiros do resto da tropa – registram Vinícius Pereira de Oliveira e Cristian Jobi Salaini, em artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional.
Historiadores interpretaram os fatos como um massacre orquestrado para eliminar o problema da liberdade prometida aos combatentes e, assim, apressar a paz. Outros contestaram a versão, dizendo que a carta não é autêntica. Para os Lanceiros Negros Contemporâneos, não há dúvida da traição.
– Foi mais fácil desarmar os negros e realizar a covardia de Porongos – diz Centeno.
O certo é que muitos africanos tombaram em defesa dos chefes farroupilhas e que a chamada República Riograndense não aboliu a escravatura. Ao morrer, em 1847, Bento Gonçalves deixou de herança para os filhos 53 escravos negros.
(Matéria publicada na Zero Hora de 14/09/2010 - página 30)
terça-feira, 14 de setembro de 2010
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